sábado, 4 de fevereiro de 2012

A Morte Dos Sentidos




     I

Não há muito que eu saiba. E cada vez mais a minha memória torna tudo mais incerto. Sinto o frio da pedra e da morte, as trevas da solidão e do medo… os suores frios que escorrem pela minha pele angulada.


Sei que existem quatro paredes que me rodeiam e que numa delas existe uma porta de ferro. Sei quantos passos são ao longo de cada parede e os passos de uma volta completa. Sei quantos passos são da porta a cada canto e que, para tal, tive de caminhar curvado… soube então que o tecto é demasiado baixo. Já contei as pedras existentes nas paredes mas já não me recordo. Arrastando os pés, de braços esticados utilizando a ponta dos dedos como antenas, descobri tudo isto pelo tacto.

Não me lembro do dia em que me levaram para uma sala e me arrancaram os olhos e a língua com tenazes ao rubro. Não me lembro do dia em que me arrastaram violentamente para uma sala e me furaram os tímpanos nem de nada antes disso.

Estou despido e sou um homem. Sei que toquei o sexo e descobri que sou um homem, se o que faz um homem for o pedaço de carne imunda que tenho entre as pernas. A cela fede a urina e a fezes e a podre. Céus, o que eu não dava por um palmo de solo onde repousar a cabeça, que não estivesse coberto de esterco...

Os dias passam negros e mudos, os dias, as semanas, os meses, os anos, as décadas e os séculos são negros e mudos. Por vezes chego a pensar que o tempo avança no sentido inverso, dia após dia, ano após ano, século após século até chegar à origem do Mundo.

Chego a sentir-me muito pequeno e passo momentos incalculáveis muito quieto a ser uma bactéria ou qualquer microrganismo. Chego a ser a serpente que tentou Eva ou o sangue derramado nas batalhas ao longo dos milénios. Preso na cela, isolado, vou a todas as épocas e estou em todas as coisas. Sou a Terra e a Água, sou o Ar e o Fogo. Sou todos os elementos e o Sol e a Lua e as Estrelas.

Mas a realidade, essa sempre chega, sorrateiramente, sob a forma de vergastadas.

Alheio a tudo e a nada, o meu corpo ou o que resta dele reage maquinalmente a impulsos que não são meus. As minhas mãos, débeis, tocam o prato da minha última refeição. Está vazio, embora tenha decidido deixar de comer. Passar de pouco a nada não requer grande esforço, e é curioso como no auge da fraqueza as entranhas cessam de protestar.

Os Sombra são aqueles que me forçam a fazer coisas. Os Sombra foram aqueles que me obrigaram a comer, talvez homens talvez demónios, obrigaram-me a comer mesmo depois de eu ter vomitado para o prato a medíocre quantidade de comida rançosa que me haviam trazido.

Já tentei suster a respiração tempo suficiente para morrer ou algo parecido. Já me deitei na pedra coberta de excrementos a sentir-lhe o frio, sem me mexer um milímetro que fosse, deixando que a dormência me percorresse os membros e o tronco, e lentamente, o crânio, até que todo eu me transformasse em pedra também. 

Quando tudo o que vemos são trevas torna-se difícil de distinguir quando estamos a dormir ou acordados, e tudo o que existe são os fantasiosos momentos de luz dos sonhos mais reais que qualquer mundo que se me apresente. Talvez por esse motivo tenha dormido durante muitos dias ou anos seguidos na esperança de nunca mais acordar.

Quando os Sombra me vêm buscar e me torturam eu sei que ainda existo.



II

Ainda lhes vejo os vultos, altos e encorpados. Não tive sequer oportunidade de lhes escapar. No silêncio das lembranças ainda os ouço, gritos apenas, abafados de angústia, no remoinho negro de memórias isoladas no subconsciente.

Quantos anos terão passado? Vi o meu corpo crescer nas sombras; as coxas, os seios… longos cabelos emaranhados que me chegam até à cintura.

Durante muito tempo não ouvi ninguém. Passos, e com eles os homens que caminhavam. Entravam bruscamente, - “Anda cá criança” - chamavam-me, em tom roufenho. Uns após outros abusavam de mim, do meu corpo envelhecido nas suas mãos. Um pedaço de carne a sair das suas vestes negras e a esfaquear-me repetidamente até ao êxtase do orgasmo, enquanto os outros lambiam os beiços e rugiam de impaciência. Acabavam e passavam a vez. Pareciam ser mais numerosos cada vez que apareciam.

Em momentos como este recordo os meus pais. A minha infância na luz das manhãs de Sol. Recordo a minha mãe e o seu sorriso quando me pegava ao colo e me dava de comer “Olha o aviãozinho” dizia ela. E o meu pai. O meu pai e as suas histórias de embalar intermináveis. Sempre fora um sonhador e oh! Como eu adorava os seus contos fantasiosos.

Na noite em que me arrancaram dos braços da minha mãe e entregaram a sua vida à lâmina de uma faca aguçada levaram-me também os meus sonhos. Os meus olhos tornaram-se janelas baças sem paisagens, espelhos virados para dentro, onde tudo o que é visível é a minha dor. Desde então, nunca mais dormi.

De olhos pregados no tecto sinto o fedor da putrefacção dos cadáveres empilhados contra as paredes, altas e bolorentas. O ar é quente e húmido, colando-se á pele desnuda e entupindo as narinas. Talvez seja essa a causa do meu sufoco, ou talvez o seja a amargura do tempo infinitamente inalterável.

Mais um dia virá, trazendo também os homens insaciáveis... e outro dia, e outro e outro…



III

Existe uma mulher na minha vida. Os Sombra trazem-na para a minha cela e forçam-me a ter relações sexuais com ela. Dão-me murros e pontapés, dão-me chicotadas e arremessam-me com pedras enquanto a violo. A mulher, sem braços e sem pernas, fica sempre muito quieta a ser uma qualquer estátua desmembrada até que eu acabe e a levem de volta para onde quer que estivesse até então.

Gostava de poder conhecê-la. De a ver e de conversar com ela. Gostava de poder escutar as suas palavras. Como seria ela? O que teria para dizer? Na minha mente tornei-a linda e pura, com longos cabelos louros de cetim e pele clara de cristal, com o olhar e a voz a transbordar de ternura e as mãos a serem uma carícia.

Já fui muito feliz com essa mulher. Casámos e vivíamos junto ao rio. Tivemos filhos também, um menino e uma menina, que corriam de um lado para o outro brincando as brincadeiras das crianças que nada sabem do mundo. Vimos muitas vezes o nascer e o pôr-do-sol juntos. Ela dizia “amo-te” e eu abraçava-a com muita força contra o peito.

Não voltei a comer desde o dia em que vomitei para o prato, nem a dormir, nem a viver feliz na casa junto ao rio.



IV

Tudo isto foi num tempo muito longínquo. Antes deste sangue que me cobre e que não é meu, antes dos homens que abusam de mim perderem completamente os limites.

Quando mais uma vez entraram de rompante, empunhando machados, soube que iria ser um dia completamente diferente. Parte de mim regozijou-se com esta súbita alteração.

Ficaram a olhar-me muito tempo. Um deles avançou e retirou o sexo de dentro da vestimenta negra. Ofegava como um qualquer animal selvagem, cuspindo e praguejando. Foi então que ouvi o som do metal a rasgar o ar e de ossos a estilhaçarem-se. O grito irrompeu-se-me violentamente pela garganta. O homem esbofeteava-me e ria-se. Outra pancada. E um deles como que dançando sob a minha cabeça, com o meu braço amputado nas suas mãos enquanto o sangue jorrava do lugar onde o meu braço costumava estar. O homem saiu de cima de mim, guardou o sexo que pingava e deu lugar a outro. O mesmo processo repetiu-se até que todos os meus membros fossem arrancados à machadada e, cansados da brincadeira, virassem costas e se fossem embora.

De costas no chão, erguendo a cabeça com dificuldade, olho para o local onde outrora existiam membros e recordo tudo isto. Os meus cotos haviam-se tornado numa grosseira linha rosada. Penso no cego da outra cela. Lembro-me de como os homens me levantam rudemente do chão e me atiram por cima de um dos ombros. Dos corredores vazios, sujos e ensanguentados. Quantos mais serão os infelizes atormentados neste lugar infernal? Da sua existência nada sei e tão pouco sabia do cego da outra cela. As suas órbitas vazias e a sua expressão triste, a sua gentileza ao tocar-me era tudo o que conhecia dele, e ao mesmo tempo, parecia que o conhecera a vida toda.



V

Estava mais morto que vivo, algures, jogado para qualquer canto igual a todos os outros. Via dentro de mim as trevas que me rodeavam. Sem sonhos luminosos, sem esperança. De um esticão fui erguido pelo ar e atirado para fora da cela. Senti o frio do metal no pescoço quando me acorrentaram e me empurravam, entre pontapés e safanões, ao longo dos corredores. Os meus olhos cegos sentiam tudo a andar à roda, numa confusão de sangue e carnificina. Não sabia para onde me levavam nem o que iriam fazer, no entanto apenas conseguia desejar que o fim estivesse para breve.

Pegando-me na cabeça enfiaram-me num qualquer cubículo que produziu um som metálico. Não era grande, tinha espaço suficiente para um homem agachado que não fosse muito robusto.Com uma pancada forte e o som de um trinco fecharam a porta por onde me haviam feito entrar. A temperatura era mais amena do que no exterior, o que me fez recordar os longos dias solarengos à beira rio. Mas já nada disto tinha grande importância.



VI

Não se pode esperar grande cortesia neste lugar. De qualquer forma não deixou de me surpreender o facto de me terem arrastado pelo corredor por um punhado de cabelos. Sentia o couro cabeludo a arder como se lhe tivessem pegado fogo, e nas costas, as chagas abertas provocadas pelo piso irregular e pedregoso latejavam.

Levaram-me para uma cela escura, em nada diferente de todas as outras, não fosse a fornalha situada no centro da sala. Sentaram-me no chão, de frente para o enorme Inferno metálico, e mantiveram-me equilibrada pelos cabelos. A dor era agonizante e o medo do que se seguiria ainda pior. Um dos homens afastou-se, indo em direcção à fornalha. Ouvi as válvulas a rodarem e vi o lume aparecer diante de mim por uma pequena abertura. Era uma imagem de certa forma aconchegante.

Arrancando-me dos meus devaneios, não consegui conter um grito quando, inesperadamente, ouvi um homem berrar com toda a alma. Atordoada tentei olhar em volta, mas sem efeito pois o punho que me mantinha erguida limitava-me os movimentos. Foi no meio desta agitação que relanceei o olhar de novo pelo fogo, talvez em busca do apaziguamento que me fizera sentir antes. No seu interior, uma figura hedionda era lambida pelas chamas, uma cabeça sem cabelos ou orelhas, e na cara sem olhos fervilhavam bolhas sob a pele queimada. Passou-se um tempo interminável até que tudo fossem cinzas. Ainda assim os gritos não cessavam e só mais tarde me apercebi que era eu quem ainda gritava.

Fez-se um silêncio de morte enquanto um dos homens fechava as válvulas e abria os trincos. Nos meus olhos estavam ainda estampadas as imagens do que acabara de suceder enquanto se encaminhavam todos na minha direcção.

Durante algum tempo tudo o que consegui ouvir foi o meu coração a bater-me fortemente no peito.


Akila Sekhet


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